O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as sociedades existiram homens que observavam homens. Houve até alguns que eram teóricos e forjaram, como diz Lévi-Strauss, modelos elaborados “em casa”. A reflexão do homem sobre o homem e sua sociedade, e a elaboração de um saber são, portanto, tão antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na Ásia como na África, na América, na Oceania ou na Europa. Mas o projeto de fundar uma ciência do homem – uma antropologia – é, ao contrário, muito recente. De fato, apenas no final do século XVIII é que começa a se constituir um saber científico (ou pretensamente científico) que toma o homem como objeto do conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa época é que o espírito científico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao próprio homem os métodos até então utilizados na área física ou da biologia.
Isso constitui um evento considerável na história do pensamento do homem sobre o homem. Um evento do qual talvez ainda hoje não estejamos medindo todas as conseqüências. Esse pensamento tinha sido até então mitológico, artístico, teológico, filosófico, mas nunca científico, no que dizia respeito ao homem em si. Trata-se, desta vez, de fazer passar este último estatuto de sujeito do conhecimento ao de objeto da ciência. Finalmente, a antropologia, ou mais precisamente, o projeto antropológico que se esboça nessa época muito tardia na História – não podia existir o conceito de homem enquanto regiões da humanidade permaneciam inexploradas – surge em uma região muito pequena do mundo: a Europa. Isso trará, evidentemente, como veremos mais adiante, conseqüências importantes.
Para que esse projeto alcance suas primeiras realizações, para que o novo saber comece a adquirir um início de legitimidade entre outras disciplinas científicas, será preciso esperar a segunda metade do século XIX, durante o qual a antropologia se atribui objetos empíricos autônomos: as sociedades então ditas “primitivas”, ou seja, exteriores às áreas de civilização européias ou norte-americanas. A ciência, ao menos tal como é concebida na época, supõe uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Enquanto que a separação (sem a qual não há experimentação possível) entre o sujeito observante e o objeto observado é obtida na física (como na biologia, botânica, ou zoologia) pela natureza suficientemente diversa dos dois termos presentes, na história, pela distância no tempo que separa o historiador da sociedade estudada, ela consistirá na antropologia, nessa época – e por muito tempo – em uma distância definitivamente geográfica. As sociedades estudadas pelos primeiros antropólogos são sociedades longínquas às quais são atribuídas as seguintes características: sociedades de dimensões restritas; que tiveram poucos contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia é pouco desenvolvida em relação à nossa; e nas quais há uma menor especialização das atividades e funções sociais. São também qualificadas de “simples”; em conseqüência, elas irão permitir a compreensão, como numa situação de laboratório, da organização “complexa” de nossas próprias sociedades.
A antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um objeto que lhe é próprio: o estudo das populações que não pertencem à civilização ocidental. Serão necessárias ainda algumas décadas para elaborar ferramentas de investigação que permitam a coleta direta no campo das observações e informações. Mas logo após ter firmado seus próprios métodos de pesquisa – no início do século XX – a antropologia percebe que o objeto empírico que tinha escolhido (as sociedades “primitivas”) está desaparecendo; pois o próprio universo dos “selvagens” não é de forma alguma poupado pela evolução social. Ela se vê, portanto, confrontada a uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma questão se coloca, a qual, como veremos neste livro, permanece desde seu nascimento: o fim do “selvagem” ou, como diz Paul Mercier (1996), será que a “morte do primitivo” há de causar a morte daqueles que haviam se dado como tarefa o seu estudo? A essa pergunta vários tipos de resposta puderam e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em três deles.
1) O antropólogo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o âmbito das outras ciências humanas. Ele resolve a questão da autonomia problemática de sua disciplina reencontrando, especialmente a sociologia, e notadamente o que é chamado de “sociologia comparada”.
2) Ele sai em busca de uma área de investigação: o camponês, este selvagem de dentro, objeto ideal de seu estudo, particularmente bem adequado, já que foi deixado de lado pelos outros ramos das ciências do homem.
3) Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive não exclui o anterior (pelo menos enquanto campo de estudo), ele afirma a especificidade de sua prática, não mais através de um objeto empírico constituído, (o selvagem, o camponês), mas através de uma abordagem epistemológica constituinte. Essa é a terceira via que começamos a esboçar nas páginas que se seguem, e que será desenvolvida no conjunto deste trabalho. O objeto teórico da antropologia não está ligado, na perspectiva na qual começamos a nos situar a partir de agora, a um aspecto geográfico, cultural ou histórico particular. Pois a antropologia não é senão um certo olhar, um certo enfoque que consiste em:
a) O estudo do homem inteiro;
b) O estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as épocas.
Veja Também:
O Estudo do Homem Inteiro
O Estudo do Homem Inteiro
O Estudo do Homem em Sua Diversidade
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2006. p 13 – 24.